R$ 240 milhões: esta é a cifra que João de Deus movimentou em uma década
A matéria foi publicada com exclusividade pelo jornal O Popular nesta segunda-feira, 18: documentos levantados pela Polícia Civil mostram que o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, de 79 anos, recebeu em suas contas bancárias quase R$ 240 milhões entre 2009 e 2019, mas que paralelamente movimentava um grande volume de recursos fora das instituições financeiras, seja em dinheiro em espécie, joias ou outros meios.
Parte destes valores ele conseguia por meio das doações de pessoas que eram convencidas a buscar socorro espiritual em seu centro de atendimento em Abadiânia, a Casa Dom Inácio Loyola, uma entidade sem fins lucrativos.
O inquérito – aberto a pedido do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) meses após a prisão de Faria em dezembro de 2018 por crimes de estupro e abuso sexual – foi remetido para a Justiça em março deste ano. João de Deus foi indiciado por apropriação indébita, uma vez que, segundo a Polícia Civil, o médium “desviava uma grande quantidade de dinheiro” da Casa Dom Inácio, onde recebia até 3 mil pessoas por dia em busca de supostos tratamentos espirituais e onde cometeu os crimes sexuais pelos quais já foi condenado a mais de 100 anos de prisão, sendo que alguns ainda aguardam julgamento.
“Fica demonstrado que João Teixeira de Faria se apropriou indevidamente do dinheiro da associação privada Centro Espírita Dom Inácio de Loyola, entidade sem fins lucrativos, remetendo dinheiro desta associação para sua conta pessoal, para a conta de sua esposa, para a conta de sua empresa Cristais Dom Inácio e para terceiros”, afirma o documento, ao qual o jornal O Popular teve acesso.
A defesa do médium afirma que a Casa Dom Inácio [foto à esquerda] é uma “pessoa jurídica de direito privado” e que as decisões nela tomadas “não estão sob o crivo do poder público e nem de terceiros” e que só aos administradores da mesma cabe o rumo dos recursos que passam por lá. “Logo não há crime”, afirma.
A investigação começou após relato de uma cidadã australiana que acusou João de Deus de ter se apropriado de todo seu patrimônio enquanto supostamente se tratava na Casa Dom Inácio. Além do médium, ela cita pessoas que são apontadas como muito próximas dele, com funções de responsabilidade no centro. Entretanto, apenas Faria e a esposa dele, Ana Keyla Teixeira de Lourenço, foram indiciados – no caso dela, por crime contra a relação de consumo.
Além da Casa Dom Inácio, foi investigado o destino dos recursos que passaram pela loja de cristais e pela lanchonete e livrarias, todas homônimas em relação ao centro de atendimento, além de uma farmácia de manipulação que leva o nome do médium e uma clínica odontológica com o sobrenome dele. A loja de cristais foi fechada no final do ano passado e a clínica, em 2017.
O relatório final da investigação aponta que “há claramente confusão patrimonial” entre a Casa Dom Inácio e as demais empresas, visto que recursos volumosos circulam entre elas. A Polícia Civil levantou suspeita sobre a retirada de mais de R$ 1 milhão do centro de atendimento para seis destinos, sendo que metade foi para a loja de cristais. Por outro lado, foram repassados mais de R$ 1 milhão da livraria e da farmácia para a casa.
As investigações, entretanto, não conseguiram apurar a existência de uma suposta organização criminosa, mas afirma que ela ainda está em vigor. Estas pessoas auxiliariam João de Deus a retirar os recursos do centro de atendimento em Abadiânia e a ocultá-los, sendo as transações bancárias entre os investigados a principal prova.
“Analisando a documentação, não resta dúvida de que a organização é devidamente estruturada, inclusive com hierarquia e divisão de tarefas, sendo, atualmente, João Teixeira de Faria, como principal integrante, auxiliado por pessoas próximas que sempre exercem de forma direta e indiretamente a coação e outros meios escusos para blindar e manter protegido das atividades ilícitas”, afirmou a Polícia Civil em um dos documentos protocolados no Judiciário.
Entretanto, João de Deus não foi indiciado por lavagem de dinheiro porque não se conseguiu encontrar “elementos cabais” mostrando que ele ou outra pessoa próxima tenha feito qualquer conduta com o intuito de ocultar ou dissimular a natureza dos recursos oriundos do centro de atendimento.
O relatório foi assinado pelo delegado Thiago Martiniano [foto à direita], da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), mas a investigação foi conduzida na maior parte pela delegada Karla Fernandes Guimarães, que integrava a força-tarefa criada pela Polícia Civil na época da prisão de João de Deus para investigar todas as denúncias envolvendo o médium.
No caso do crime contra a relação de consumo, pelo qual foram indiciados o médium e sua esposa, a Polícia Civil analisou autuações feitas por autoridades sanitárias contra a farmácia de manipulação de onde saíam os supostos medicamentos usados no tratamento de quem buscava a Casa Dom Inácio. Posteriormente, novas verificações mostraram que o local passou a atender as recomendações feitas pelo poder público.
O processo por apropriação indébita foi remetido inicialmente para a vara judicial que apura crimes relacionados a organizações criminosas, mas como não se identificou a atuação de uma quadrilha neste caso, o inquérito foi transferido para a comarca de Abadiânia, onde tramitam as acusações envolvendo João de Deus.
Relembre
João de Deus foi preso no dia 16 de dezembro, menos de 10 dias após o Programa do Bial, da Rede Globo, mostrar denúncias contra o médium envolvendo crimes sexuais. As primeiras condenações vieram entre o final de 2019 e o começo de 2020. Há dois anos, ele deixou o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia e foi transferido para prisão domiciliar, onde recorre das condenações e responde por outros processos ainda em andamento.
Em nota, a defesa de João de Deus afirmou que a investigação “já nasceu morta” e que nada foi encontrado após três anos de investigação, “intensa atividade policial de perquirição”, medidas de quebra de sigilo telefônico e telemático, além de interceptações telefônicas, “com sucessivas prorrogações”. “Houve também quebra de dados bancários e incursões de análise de dados diversas e mesmo assim nada concluíram contra o meu cliente, de modo a confirmar essa perseguição interminável”, comentou o advogado Anderson Van Gualberto de Mendonça.
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